Em 2006, ao organizar uma exposição na Oca, no Parque Ibirapuera, em São Paulo, o paleontólogo Luiz Eduardo Anelli se deparou com uma questão que alimentaria sua trajetória acadêmica nos anos seguintes. “Por que a Argentina já catalogou 150 espécies de dinossauros, enquanto o Brasil possui apenas 23?”, refletia Anelli, surpreso com a discrepância entre os países vizinhos. Essa reflexão foi a semente para um projeto que cresceu e se transformou no livro “Novo Guia Completo dos Dinossauros do Brasil”, publicado recentemente pela Editora da USP e Editora Peirópolis.
Desde a publicação inicial, novas descobertas significativas aumentaram o número de dinossauros brasileiros catalogados para 54 espécies. Este guia atualizado aborda, com ilustrações detalhadas do paleoartista Julio Lacerda, as incríveis formas de vida que dominaram a Terra na Era Mesozóica, época em que o território hoje brasileiro estava repleto de espécies únicas.
A Singularidade do Brasil na Era dos Dinossauros
O Brasil possui condições geológicas e paleontológicas únicas que dificultam a preservação dos fósseis. Ao contrário da Argentina, onde as extensas formações rochosas da Patagônia preservaram material fóssil ao longo dos milênios, as densas camadas de solo e vegetação do interior brasileiro escondem essas preciosas camadas fossilíferas, tornando-as mais difíceis de encontrar.
Anelli destaca três fatores principais para a diferença no número de fósseis descritos entre os dois países. Durante a Era Mesozoica, a Argentina ocupava uma área mais próxima ao oceano, onde havia mais umidade e recursos. Já o Brasil situava-se na região central do supercontinente Gondwana, marcado por climas áridos e baixa biodiversidade. Além disso, quando as Américas do Sul e África começaram a se separar, a umidade favoreceu o Brasil, enquanto a Argentina tornou-se cada vez mais desértica. Para completar, a tradição paleontológica argentina começou muito antes da brasileira. Dinossauros começaram a ser descritos na Argentina ainda no final do século XIX, enquanto no Brasil essa área só ganhou tração a partir dos anos 1970.
Sete Dinossauros Icônicos Descobertos no Brasil
Anelli selecionou sete das espécies mais notáveis encontradas no Brasil, cada uma com características fascinantes.
- Staurikosaurus pricei: O Ancião
Considerado o dinossauro mais antigo do mundo, o Staurikosaurus viveu há cerca de 233 milhões de anos no território que hoje corresponde ao Rio Grande do Sul. Ele antecede espécies famosas da Argentina, como o Eoraptor e Herrerasaurus, e é o único fóssil brasileiro que integra o acervo da Universidade Harvard.
- Buriolestes schultzi: O Precursor das Linhagens Herbívoras
Embora fosse carnívoro e bípede, o Buriolestes deu origem a dinossauros quadrúpedes e herbívoros. Com fósseis em excelente estado de preservação, incluindo até o crânio e a forma do cérebro, ele revelou muito sobre a evolução dos gigantes pescoçudos que dominaram o Cretáceo. Essas descobertas confirmam a importância evolutiva das linhagens de dinossauros brasileiras.
- Ubirajara jubatus: A Polêmica Internacional
O Ubirajara, um dinossauro com penas e características semelhantes às aves do paraíso, gerou grande controvérsia. Encontrado no Crato, Ceará, foi levado para a Alemanha de forma contestada, onde permanece até hoje. É um exemplo do tipo de exportação que ainda gera questões éticas e políticas no campo da paleontologia.
- Oxalaia quilombensis: O Pescador das Marés
Nomeado em homenagem ao orixá Oxalá e aos quilombolas do Maranhão, o Oxalaia era um dinossauro pescador. Fragmentos fósseis encontrados indicam similaridades com dinossauros africanos, mostrando a relação biogeográfica entre os continentes antes da separação de Gondwana.
- Ibirania parva: O Nanico Adaptado
Em tempos difíceis do Cretáceo, quando água e comida eram escassas, o Ibirania parva desenvolveu adaptações para sobreviver. Pequeno e pescoçudo, ele é um exemplo de como a evolução pode moldar os seres vivos de acordo com a disponibilidade de recursos.
- Berthasaura leopoldinae: A Banguela Caçadora
Nomeada em homenagem à cientista Bertha Lutz, à imperatriz Leopoldina e à escola de samba Imperatriz Leopoldinense, a Berthasaura era um predador atípico, sem dentes, provavelmente com um bico córneo afiado, semelhante ao das tartarugas.
- Uberabatitan ribeiroi: O Colosso Brasileiro
O maior dinossauro já encontrado no Brasil, o Uberabatitan podia atingir até 26 metros de comprimento, comparável a dois ônibus. Ele é o titanossauro mais completo do país e um dos maiores do mundo.
A Escassez de Representantes do Período Jurássico
Outro mistério da paleontologia brasileira é o baixo número de fósseis do Período Jurássico, um momento de explosão da diversidade dos dinossauros em escala global. No entanto, poucas espécies foram encontradas no Brasil, com algumas trilhas de pegadas no Rio Grande do Sul e fragmentos de possíveis dinossauros na divisa entre Pernambuco e Bahia.
Essa ausência tem uma explicação geológica. Durante o Jurássico, as rochas no Brasil emergiram, expondo-se à erosão e eliminando possíveis registros fósseis. Foi apenas no Cretáceo, quando a separação de Gondwana começou a rebaixar o território brasileiro, que os sedimentos se acumularam e os fósseis puderam se formar.
O Fascínio e os Desafios da Paleontologia Brasileira
A paleontologia no Brasil ainda é uma ciência jovem, mas repleta de promessas. As descobertas dos últimos anos revelam não apenas uma diversidade maior do que se imaginava, mas também a importância do Brasil na história dos dinossauros. Anelli e outros paleontólogos trabalham para garantir que essas histórias sejam contadas, mesmo quando os obstáculos, como o clima e a complexa geologia do território, tornam as descobertas mais difíceis.
O legado dos dinossauros brasileiros, agora mais acessível ao público graças a obras como o “Novo Guia Completo dos Dinossauros do Brasil”, é um tesouro científico e cultural que permite compreender melhor não só a pré-história, mas também as transformações geológicas e ecológicas que moldaram o país. Da grandeza do Uberabatitan à leveza do Ubirajara, essas espécies mostram como os ecossistemas antigos do Brasil contribuíram para o surgimento dos colossos que uma vez vagaram pela Terra.