Geo Síntese

A tempestade solar de 2024 e o risco global crescente

Na noite de 10 de maio de 2024, um fenômeno astronômico com poder de afetar a vida na Terra de maneira ampla e silenciosa atingiu seu ápice: uma poderosa erupção solar de classe X5.8, oriunda da mancha solar AR3664, rompeu o limiar da atmosfera solar e lançou bilhões de toneladas de plasma eletricamente carregado em direção ao espaço. Essa explosão não foi um evento isolado, mas a sexta de uma sequência alarmante, que incluiu outras de classe X4.0, X4.5, duas X1.2 e uma X1.6, em menos de uma semana.

Poucas horas depois, a Terra foi envolvida por essa tempestade solar, a mais intensa desde 2005. Efeitos foram sentidos quase que imediatamente: apagões localizados, interferências em redes elétricas, falhas em sistemas de GPS e, por outro lado, um espetáculo visual raro — auroras boreais e austrais observadas em latitudes incomuns, como na Europa central, em partes da China e até no norte do Brasil.

O que é uma tempestade solar?

Do ponto de vista geofísico, uma tempestade solar é um evento que ultrapassa os limites da astronomia e toca a superfície de nossa sociedade tecnológica. Ela se inicia com uma erupção solar, processo em que o Sol libera uma grande quantidade de energia, acompanhada por ejeções de massa coronal (CME, na sigla em inglês) — um turbilhão de partículas carregadas e campos magnéticos viajando a velocidades superiores a 1,5 milhão de km/h.

Quando essas partículas alcançam a magnetosfera terrestre, interagem com o campo magnético do planeta, deformando-o e gerando uma cadeia de reações que afetam desde a ionosfera até o funcionamento de tecnologias que dependem da comunicação via satélite.

A classificação das tempestades solares segue uma escala estabelecida pela NOAA (Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos EUA), baseada na intensidade dos raios-X liberados. As categorias A, B, C, M e X indicam potência crescente, sendo que cada nível é dez vezes mais intenso que o anterior. Assim, uma erupção de classe X5.8 representa uma magnitude incomum, capaz de causar perturbações globais.

Quando a simulação virou realidade

 

Um aspecto inusitado da tempestade de 2024 foi seu momento: enquanto ocorria, cerca de 30 agências governamentais norte-americanas, sob liderança da NASA, estavam reunidas para uma simulação de ameaça espacial. A coincidência entre o exercício e o evento real deu à experiência um tom dramático.

“Nosso objetivo era testar protocolos, identificar vulnerabilidades e aprimorar a resposta diante de uma eventual catástrofe espacial”, explicou Jamie Favors, diretor do Programa de Clima Espacial da NASA. “O que era apenas um treinamento acabou sendo interrompido por uma tempestade real, o que nos proporcionou dados valiosos e também uma dose de urgência”.

O episódio ficou conhecido como “Tempestade de Gannon”, homenagem à cientista Jennifer Gannon, renomada especialista em clima espacial. Embora não tenha causado perdas humanas nem destruição em larga escala, a tempestade expôs, mais uma vez, a fragilidade de uma civilização dependente de eletricidade, conectividade e tecnologia.

Impactos diretos na infraestrutura

A seguir, um breve panorama dos efeitos mais significativos da Tempestade de Gannon:

  • Linhas de transmissão de alta tensão sofreram picos de corrente elétrica, exigindo desligamentos emergenciais.

  • Transformadores apresentaram superaquecimento, um fenômeno que pode levar à queima de equipamentos e apagões prolongados.

  • Sistemas de GPS, fundamentais para agricultura de precisão, transporte aéreo e operações logísticas, foram temporariamente desestabilizados.

  • Tratores agrícolas guiados por coordenadas automatizadas chegaram a se desligar em regiões do meio-oeste norte-americano.

  • Satélites experimentaram arrasto atmosférico aumentado, uma vez que a energia da tempestade aqueceu e expandiu as camadas superiores da atmosfera terrestre.

  • Exposição à radiação aumentada representou risco para tripulações em voos polares e astronautas em órbita.

Além disso, foram registradas auroras intensas em regiões pouco habituadas a esse tipo de espetáculo. O projeto Aurorasaurus, ligado à NASA, contabilizou mais de 6 mil relatos em 55 países e nos sete continentes — um feito notável que uniu ciência cidadã e redes sociais.

Marte também foi atingido

 

Vale ressaltar que os efeitos da tempestade não se restringiram à Terra. A mesma mancha solar AR3664 lançou ejeções que atingiram Marte, danificando temporariamente equipamentos da sonda Mars Odyssey 2001, um dos projetos de longa duração da NASA. A câmera estelar da sonda ficou inoperante por cerca de uma hora, comprometendo a navegação orbital. Isso evidencia o alcance interplanetário desses eventos e a vulnerabilidade de nossas missões espaciais.

Entre Carrington e Gannon: o risco latente

Embora a tempestade de 2024 tenha sido significativa, ela está longe de se igualar ao maior evento já registrado na história: o famoso Evento de Carrington, ocorrido em 1859. Naquela ocasião, uma erupção solar tão intensa atingiu a Terra que o céu noturno foi iluminado por auroras em locais como Havana e Bogotá, enquanto operadores de telégrafo relatavam faíscas e choques elétricos vindos dos aparelhos.

Se um evento como esse ocorresse hoje, as consequências seriam devastadoras: queima em massa de transformadores, interrupção de sistemas de comunicação, falhas em redes de satélites, paralisação de sistemas financeiros, colapso de internet e até riscos à aviação comercial. Estudos sugerem que o impacto econômico de um “Carrington moderno” poderia ultrapassar trilhões de dólares.

Prevenção e preparação: um desafio global

Diante desse panorama, a NASA e outras agências vêm redobrando esforços em sistemas de previsão e mitigação de riscos. Telescópios solares, sondas espaciais como a Parker Solar Probe e modelos computacionais avançados são usados para prever com mais precisão a chegada de tempestades.

Ainda assim, a prevenção completa é inviável. O que se pode fazer é tornar as infraestruturas mais resilientes — redes elétricas com sistemas de proteção, protocolos de desligamento controlado e satélites mais resistentes a radiações solares intensas.

Além disso, há um trabalho de conscientização crescente. A sociedade precisa compreender que o Sol, apesar de ser fonte de vida, também é uma estrela dinâmica e imprevisível, capaz de nos lembrar de nossa condição vulnerável em um planeta tecnologicamente avançado, mas fisicamente exposto.

A tempestade solar de 2024, embora não tenha sido a mais poderosa já registrada, foi um alerta eloquente. Em um mundo altamente interconectado, eventos cósmicos deixaram de ser fenômenos distantes e abstratos para se tornarem questões de segurança nacional, ambiental e até alimentar.

Como geógrafo, é impossível ignorar a interdependência entre a geografia física, os sistemas humanos e os eventos astronômicos. A Terra é um sistema em rede, e qualquer desequilíbrio solar tem reverberações geopolíticas, econômicas e sociais. Diante disso, a pergunta que se impõe não é “se” teremos outra tempestade, mas “quando” e quão preparados estaremos para enfrentá-la.