Descubra como a Coreia do Sul recicla 97% de seus resíduos alimentares com um sistema inovador que combina tecnologia e conscientização ambiental
Na Coreia do Sul, reciclar restos de comida é parte da rotina diária de milhões de pessoas. Para Yuna Ku, jornalista que vive em Seul, é um hábito. “Estou acostumada”, diz ela. Yuna paga para reciclar seus resíduos alimentares, utilizando uma máquina com sensores em seu complexo residencial, que conta com 2 mil apartamentos. Esse sistema, à primeira vista complexo, fez da Coreia do Sul um exemplo de gestão de resíduos alimentares para o mundo.
A eficiência sul-coreana na reciclagem de resíduos alimentares não aconteceu por acaso. Trata-se do resultado de um processo gradual e estruturado que reflete o compromisso do governo e da população em resolver problemas ambientais e de saúde pública decorrentes do desperdício de alimentos. Hoje, o país recicla 97,5% dos 4,56 milhões de toneladas de restos de alimentos produzidos anualmente por residências, restaurantes e pequenas empresas. Esses números, impressionantes quando comparados a outras nações, demonstram o sucesso de políticas públicas, como o “pague pelo seu desperdício”, que integram uma série de medidas inovadoras.
O Desafio do Desperdício Global
O desperdício de alimentos é um problema mundial, com graves consequências ambientais e econômicas. De acordo com a ONU, em 2019, foram desperdiçadas 931 milhões de toneladas de alimentos em todo o mundo, provenientes de residências, estabelecimentos comerciais e restaurantes. Esse desperdício não só agrava a fome global, mas também contribui significativamente para a emissão de gases de efeito estufa, sendo o metano um dos principais subprodutos da decomposição de resíduos alimentares.
Nos Estados Unidos, por exemplo, apenas 40% dos resíduos alimentares gerados por restaurantes, residências e supermercados são reciclados, enquanto o restante vai para aterros sanitários. Isso representa um enorme desafio ambiental, especialmente porque os resíduos de alimentos em decomposição são uma importante fonte de metano, um gás com potencial de aquecimento global muito superior ao do dióxido de carbono. A Coreia do Sul, entretanto, conseguiu transformar esse problema em uma oportunidade, estabelecendo um sistema de reciclagem altamente eficiente que pode servir de modelo para outras nações.
A Jornada Sul-Coreana para a Sustentabilidade
Na década de 1980, a Coreia do Sul começou sua rápida transformação econômica. Com o crescimento populacional e a industrialização, surgiram sérios problemas de gestão de resíduos. No entanto, foi somente em 1996 que o país deu os primeiros passos para enfrentar o problema do desperdício alimentar, reciclando apenas 2,6% desses resíduos. As crescentes demandas sociais e os impactos ambientais dos aterros sanitários, muitos localizados perto de áreas residenciais, desencadearam uma série de protestos e movimentos comunitários. Esses esforços pressionaram o governo a agir.
Em 1995, a Coreia do Sul implementou um sistema de pagamento pelo volume de resíduos gerados, mas ainda não havia uma distinção clara entre resíduos alimentares e outros tipos de lixo. A mudança mais significativa veio em 2005, quando o país proibiu o despejo de restos de alimentos em aterros sanitários. O marco definitivo, no entanto, foi a introdução da Taxa sobre Resíduos de Alimentos por Peso (WBFWF) em 2013, obrigando os cidadãos a pagar proporcionalmente à quantidade de resíduos alimentares descartados. O sistema foi sendo aprimorado ao longo dos anos, incorporando avanços tecnológicos como o uso de máquinas de identificação por radiofrequência (RFID), que pesam automaticamente os resíduos e calculam o custo com base no peso.
Como Funciona o Sistema de Reciclagem na Prática?
O sistema de reciclagem de alimentos da Coreia do Sul varia de acordo com a região, mas há três métodos principais: o uso de sacolas autorizadas, adesivos e máquinas RFID. Em áreas mais tradicionais, as sacolas autorizadas são vendidas em diferentes tamanhos, e os cidadãos devem comprá-las para descartar os resíduos. Os restaurantes e negócios maiores usam adesivos comprados antecipadamente para identificar e pagar pelo volume de resíduos.
Por outro lado, os apartamentos modernos, como o de Yuna Ku, adotaram o sistema RFID. A jornalista explica que, diariamente, deposita seus resíduos em um recipiente de aço e, periodicamente, leva-o até a máquina RFID, que pesa e registra os resíduos. O custo é calculado com base no peso e adicionado à conta mensal de serviços públicos, como a de água. Yuna paga cerca de 5 dólares por mês, um valor relativamente baixo considerando a renda média dos sul-coreanos, que é superior a 2 mil dólares por mês.
Esse sistema altamente eficiente também desencoraja o desperdício, já que cada morador pode ver o peso exato dos resíduos gerados e, consequentemente, o custo associado. A conscientização sobre o desperdício é reforçada pela penalização de quem não segue as normas. Multas podem variar de 70 dólares para residências a mais de 7 mil dólares para grandes estabelecimentos que desrespeitam as regras.
Desafios e Perspectivas
Embora o sistema sul-coreano de reciclagem seja exemplar, ainda existem desafios. Um dos principais problemas é o alto teor de sal dos alimentos típicos da Coreia do Sul, que pode ser prejudicial quando os resíduos são convertidos em ração animal. Além disso, o uso inadequado de restos alimentares para a produção de ração pode aumentar o risco de doenças, como o surto de febre suína africana em 2019. Para contornar esses desafios, o governo sul-coreano implementou regulamentações rigorosas, garantindo que os resíduos sejam processados de maneira segura, utilizando métodos como aquecimento e fermentação.
A produção de biogás, outra solução sustentável, também enfrenta obstáculos técnicos. Melhorias tecnológicas são necessárias para aumentar a eficiência na produção de energia a partir de resíduos alimentares, especialmente devido ao alto teor de umidade e sal dos restos de alimentos.
O que o Mundo Pode Aprender com a Coreia do Sul?
O sucesso da Coreia do Sul em reciclar quase 100% dos resíduos alimentares é um exemplo claro de como a combinação de políticas públicas, tecnologia avançada e conscientização da população pode resolver problemas ambientais. Países com densidade populacional elevada e limitada disponibilidade de espaço para aterros sanitários podem se beneficiar de sistemas semelhantes.
Entretanto, como ressalta a especialista da FAO, Rosa Rolle, cada país deve adaptar suas políticas de acordo com suas realidades sociais e econômicas. Em países em desenvolvimento, onde a insegurança alimentar é uma preocupação, políticas que promovam a redistribuição de alimentos podem ser mais apropriadas do que a cobrança pelo desperdício. Além disso, é fundamental que os governos se baseiem em dados sólidos e adotem soluções personalizadas para seus contextos específicos.
A experiência da Coreia do Sul oferece uma lição importante: a gestão de resíduos alimentares não se trata apenas de tecnologia ou regulamentação, mas também de uma mudança cultural em relação ao desperdício de alimentos. A conscientização e o envolvimento da população são essenciais para o sucesso de qualquer sistema de gestão de resíduos.