Geo Síntese

Crise migratória e militarização em Los Angeles expõem dilemas dos EUA

Enquanto o sol poente de junho alaranjava os céus de Los Angeles, mais de 2.000 soldados da Guarda Nacional ocupavam posições estratégicas na cidade. Ao mesmo tempo, 700 fuzileiros navais foram colocados em prontidão para eventual mobilização. A imagem é chocante, mas não inédita. A maior cidade da Califórnia — e segunda maior dos Estados Unidos — está no centro de uma tempestade política, social e institucional que reacende antigos fantasmas da história americana: a tensão entre o federalismo e o poder central, o tratamento dado aos imigrantes e o uso da força como linguagem política.

A atual crise começou com uma série de protestos contra as políticas anti-imigração do governo Donald Trump, que entraram no quarto dia consecutivo em 9 de junho. Esses protestos, no entanto, são mais do que manifestações pontuais: refletem a profunda fratura geopolítica interna entre um governo federal conservador e Estados como a Califórnia, que adotam uma postura progressista e inclusiva em relação aos imigrantes.

É importante lembrar que Los Angeles não é apenas uma cidade com grande presença de imigrantes; ela é um símbolo. A metrópole abriga comunidades inteiras que vivem há décadas nos Estados Unidos, muitas vezes em situação migratória irregular, mas integradas à economia, à cultura e à vida urbana. Diante disso, o envio de tropas sem a autorização do governador Gavin Newsom foi encarado por muitos como uma violação da soberania estadual e um gesto deliberadamente inflamatório por parte do governo federal.

O procurador-geral da Califórnia, Rob Bonta, anunciou um processo contra o governo Trump, argumentando que a medida fere a 10ª Emenda da Constituição, que delimita os poderes entre os governos federal e estaduais. Bonta foi enfático ao declarar que a presença da Guarda Nacional sem consentimento local representa uma escalada desnecessária, “sem respaldo nas condições locais”.

A resposta de Trump, por sua vez, seguiu a retórica habitual. Alegou estar “fazendo a coisa certa” e comparou os protestos a incêndios, sugerindo que a cidade estaria em chamas sem a intervenção militar. A prefeita de Los Angeles, Karen Bass, não hesitou em chamar a situação de “caos provocado pelo governo federal”, qualificando a presença de tropas como uma “escalada perigosa”.

O episódio reacende debates históricos sobre o papel da Guarda Nacional. Embora ela costume operar sob comando estadual, o presidente dos EUA tem a prerrogativa de federalizá-la sob o Título 10 do Código dos EUA — a mesma legislação utilizada durante os protestos civis das décadas de 1960 e 1970. Trump utilizou o mesmo dispositivo jurídico usado por Eisenhower para garantir os direitos civis no Sul segregacionista. A ironia, no entanto, está na diferença de contexto: antes, para garantir igualdade racial; agora, para conter manifestantes que protestam contra políticas excludentes.

A geopolítica interna dos EUA é, muitas vezes, esquecida nas análises tradicionais, mas eventos como este evidenciam a existência de “regiões políticas” dentro do mesmo território nacional. A Califórnia, governada por democratas, tornou-se uma fortaleza de resistência às políticas de Trump, sobretudo na questão migratória. Com 39 milhões de habitantes e a quarta maior economia do mundo — ultrapassando inclusive o Japão —, o Estado tem recursos e legitimidade política para confrontar a Casa Branca.

O governador Gavin Newsom já vem há anos blindando o Estado contra as investidas de Trump. Desde sua eleição, anunciou a intenção de transformar a Califórnia em um Estado “à prova de Trump”, e tem utilizado as ferramentas institucionais à sua disposição para proteger imigrantes, minorias sexuais, e garantir políticas ambientais progressistas. Recentemente, a Câmara Municipal de Los Angeles aprovou uma lei que proíbe o uso de recursos locais para auxiliar operações federais de imigração.

Esse embate tem também dimensões econômicas. Setores como agricultura e construção civil, fundamentais à economia californiana, dependem fortemente da mão de obra de imigrantes sem documentação. Em algumas regiões agrícolas do Vale Central, por exemplo, até 70% dos trabalhadores não têm residência legal. A deportação em massa, portanto, ameaça não apenas famílias inteiras, mas também a produção de alimentos, os preços nos mercados e a estabilidade social.

Segundo dados do Pew Research Center, a Califórnia abriga mais de 10 milhões de pessoas nascidas no exterior. Destas, cerca de 1,8 milhão vivem em situação irregular. Em milhões de lares, os filhos nasceram nos Estados Unidos e são cidadãos, enquanto os pais permanecem sem documentos. São famílias mistas, que representam cerca de 5% dos lares americanos. Qualquer política de imigração que ignore essa complexidade social corre o risco de provocar um drama humanitário sem precedentes.

A crise também tem impacto internacional. O chanceler mexicano, Juan Ramón de la Fuente, informou que ao menos 42 cidadãos mexicanos foram detidos durante as últimas operações em Los Angeles. O México acompanha de perto a situação, pois sabe que qualquer ação repressiva contra seus nacionais pode escalar em termos diplomáticos.

Os protestos se espalharam por outras cidades da Califórnia, como São Francisco, onde mais de 140 pessoas foram detidas. A polícia local relatou confrontos com manifestantes e vandalismo. Ainda assim, o prefeito Daniel Lurie reforçou o direito constitucional à manifestação pacífica e criticou qualquer tentativa de criminalizar a expressão política.

Na retórica presidencial, no entanto, os manifestantes foram classificados como “multidões violentas” que atacam agentes federais. Trump afirmou nas redes sociais que não permitirá “que nosso país seja tomado por motins de imigrantes”, e prometeu que haverá “tolerância zero” para qualquer ato que represente ameaça à “lei e à ordem”.

O uso da linguagem bélica e da militarização do espaço urbano se tornou um padrão nas respostas do governo Trump a crises internas. Há um simbolismo forte em colocar soldados armados nas ruas de Los Angeles: trata-se de uma demonstração de força voltada não apenas aos manifestantes, mas ao país inteiro. Em paralelo, a mensagem é clara: qualquer desafio às políticas da Casa Branca será enfrentado com repressão.

Essa tensão federativa revela os limites do modelo de governança dos EUA, onde o federalismo muitas vezes entra em choque com a centralização do poder executivo. A tentativa de Trump de dominar politicamente os Estados Democratas por meio do uso da força representa uma ruptura com o pacto institucional que sustenta a federação americana.

E enquanto o conflito se intensifica, os verdadeiros protagonistas desta crise — os imigrantes — continuam vivendo à sombra, temendo sair às ruas, trabalhar ou até mesmo buscar atendimento médico. São pessoas reais, com histórias, famílias e sonhos, reduzidas a números em estatísticas ou a ameaças em discursos oficiais.

A Califórnia, com sua força econômica, diversidade étnica e resistência política, representa hoje o epicentro de um embate que transcende fronteiras estaduais. É um laboratório de futuro, onde se decide não apenas o destino de milhões de imigrantes, mas o próprio rumo da democracia americana.