Acordo entre EUA e El Salvador traz implicações históricas e geopolíticas. Bukele oferece a mega-prisão para deportados e condenados americanos.
Na segunda-feira, o secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, anunciou um acordo inédito com o presidente de El Salvador, Nayib Bukele. A proposta, que envolve a transferência de deportados e criminosos condenados para a mega-prisão salvadorenha, surpreendeu tanto pela ousadia quanto pelas implicações geopolíticas e jurídicas. Esse episódio reflete não apenas uma política de segurança de mão de ferro, mas também revela o cenário complexo das relações históricas entre os dois países.
El Salvador, uma pequena nação centro-americana, carrega as cicatrizes de décadas de intervenção externa e conflitos internos. A atual proposta de Bukele pode ser vista como a mais recente etapa de uma longa história de relações assimétricas entre o país e os Estados Unidos, que, ao longo do século XX, desempenharam um papel central no cenário político e militar salvadorenho. O acordo, portanto, precisa ser compreendido dentro desse contexto histórico mais amplo.
Contexto histórico: Uma relação marcada por crises e intervenções
As relações entre os EUA e El Salvador são profundamente influenciadas pelo período da Guerra Fria. Durante a década de 1980, El Salvador tornou-se um dos principais focos da política externa americana na América Latina. Em meio à guerra civil salvadorenha (1979–1992), o governo dos EUA forneceu apoio militar e financeiro ao governo local, justificando sua intervenção como parte da luta contra o comunismo.
Essa ingerência teve consequências duradouras: milhares de refugiados buscaram abrigo nos EUA, enquanto gangues como a Mara Salvatrucha (MS-13) e Barrio 18 surgiram nas ruas de Los Angeles, formadas por jovens salvadorenhos marginalizados. Décadas depois, essas mesmas gangues se tornaram símbolos do crime organizado transnacional, retornando a El Salvador e intensificando a crise de segurança no país.
Assim, a proposta de Bukele – receber deportados e até cidadãos americanos condenados – é mais do que uma questão de política prisional; é também um reflexo de uma relação histórica de dependência, intervenção e migração forçada.
Mega-prisão: símbolo de poder e instrumento geopolítico
Inaugurada em 2023, a mega-prisão de El Salvador, conhecida como Centro de Confinamento do Terrorismo (CECOT), tornou-se uma peça central na estratégia de Bukele contra o crime organizado. A prisão foi projetada para impressionar tanto pela sua escala quanto pela severidade das condições de detenção. Com capacidade para 40 mil presos, o CECOT simboliza a política de “mão de ferro” de Bukele, que o transformou em uma figura controversa e, ao mesmo tempo, amplamente popular entre a população local.
As condições no CECOT são descritas como desumanas por grupos de direitos humanos. Celas superlotadas, temperaturas de 35°C e isolamento extremo são algumas das características denunciadas por organizações internacionais. No entanto, Bukele não mostra sinais de recuar. Pelo contrário, ele usa a prisão como um cartão de visita para reforçar sua posição de força tanto internamente quanto no cenário internacional.
A mega-prisão também representa um experimento geopolítico único: poderia El Salvador se tornar uma espécie de “terceirizador” do sistema prisional americano? A resposta a essa pergunta tem implicações de longo alcance, especialmente no campo dos direitos humanos e da soberania nacional.
Implicações jurídicas e políticas internacionais
Apesar do entusiasmo de Rubio e Bukele, o acordo enfrenta obstáculos legais significativos. O sistema jurídico americano oferece proteção robusta a cidadãos nascidos nos EUA, tornando a deportação uma opção quase impossível. Para cidadãos naturalizados, a situação é mais frágil. Como apontam especialistas em imigração, indivíduos que obtiveram a cidadania de forma fraudulenta ou possuem laços comprovados com organizações criminosas podem ser desnaturalizados e deportados.
Ainda assim, a ideia de enviar cidadãos americanos para cumprir pena em uma prisão estrangeira é praticamente sem precedentes. Shev Dalal-Dheini, diretora de relações governamentais da Associação Americana de Advogados de Imigração, afirma que tal medida nunca foi proposta antes. Mesmo que seja juridicamente viável em alguns casos, o impacto político seria profundo e polêmico.
Além disso, a proposta reacende o debate sobre a militarização das políticas de imigração e o uso de prisões como instrumentos de dissuasão. Para alguns analistas, essa abordagem pode abrir um precedente perigoso para a gestão de fluxos migratórios em outros países da região.
Impacto geopolítico: Bukele, Trump e o xadrez diplomático na América Latina
O acordo entre Bukele e o governo Trump não ocorre em um vácuo diplomático. Ele se insere em um momento de tensões crescentes entre os EUA e seus vizinhos latino-americanos, marcado por ameaças de tarifas comerciais, restrições migratórias e uma política externa cada vez mais agressiva.
Para Bukele, a proposta é uma oportunidade de se posicionar como um aliado estratégico de Washington, consolidando sua imagem como líder pragmático e moderno. Ao oferecer uma solução prática para o problema da superlotação carcerária nos EUA, Bukele fortalece sua posição política interna e aumenta sua influência regional.
Já para os Estados Unidos, o acordo pode ser uma estratégia para reforçar o controle sobre fluxos migratórios e combater o crime organizado transnacional, ao mesmo tempo em que envia uma mensagem clara de que medidas extremas estão
Pragmatismo ou populismo?
O acordo entre os EUA e El Salvador é um exemplo notável de como questões de segurança, migração e diplomacia podem se entrelaçar de forma inesperada. Para alguns, representa uma solução criativa para um problema antigo. Para outros, é um passo perigoso em direção à normalização de práticas que desafiam princípios fundamentais de direitos humanos e justiça internacional.
Independentemente de sua implementação, o pacto já cumpriu uma função simbólica: reforçar a narrativa de que a política migratória pode ser utilizada como uma extensão do poder diplomático. O futuro desse acordo pode moldar não apenas as relações entre EUA e El Salvador, mas também influenciar a forma como outras nações lidam com questões semelhantes no cenário global.