Geo Síntese

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O dilema da queima de canaviais no Brasil: impactos e regulamentação

A queima de canaviais, prática ainda comum em muitas partes do Brasil, levanta sérios questionamentos tanto ambientais quanto sociais. Embora regulamentada, essa técnica, amplamente utilizada no cultivo de cana-de-açúcar, continua sendo permitida em algumas regiões do país, principalmente em áreas onde o relevo acidentado impede a mecanização. No entanto, os incêndios recentes em São Paulo e outras partes do Brasil reacenderam o debate sobre os efeitos prejudiciais dessa prática, gerando preocupações quanto aos impactos para a saúde humana e o meio ambiente.

A queima controlada de palha de cana-de-açúcar está longe de ser uma novidade. De acordo com o decreto federal 2.661, de 1998, essa prática é regulamentada e definida como o “emprego do fogo como fator de produção e manejo em atividades agropastoris ou florestais, e para fins de pesquisa científica e tecnológica”. No entanto, apesar de ser permitida, essa técnica carrega uma série de implicações que vão além do campo da colheita.

Por que a queima ainda é usada?

A queima de canaviais é mais comumente realizada em regiões onde o relevo acidentado dificulta a mecanização. No Nordeste do Brasil, por exemplo, apenas 30% da colheita da cana-de-açúcar é feita de forma mecanizada, em contraste com 93% no resto do país, de acordo com dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). A principal razão para essa discrepância é o relevo, que impede o uso de máquinas. A queima facilita o trabalho manual, ao eliminar a palha e permitir que os trabalhadores cortem a cana com mais facilidade e eficiência.

Além de facilitar a colheita, a queima controlada também reduz o esforço físico necessário para o corte manual e aumenta a produtividade dos trabalhadores. Isso se traduz em um benefício econômico para os produtores, pois permite uma colheita mais rápida e eficiente em terrenos onde as máquinas não conseguem operar.

Contudo, a longo prazo, o impacto dessa técnica é negativo, tanto para o ambiente quanto para os trabalhadores. Embora a queima traga benefícios imediatos para a produção, os prejuízos causados à saúde do solo e ao ecossistema local podem ser irreversíveis.

A questão da mecanização

No Estado de São Paulo, onde o terreno é predominantemente plano, a queima de canaviais já foi praticamente abolida, e a colheita é 100% mecanizada. A mecanização tem vantagens claras, como a redução das emissões de gases nocivos e a eliminação do risco de propagação descontrolada de incêndios, mas enfrenta desafios em regiões de relevo irregular. No entanto, novos avanços tecnológicos estão surgindo. Empresas chinesas, por exemplo, estão desenvolvendo máquinas capazes de operar em terrenos com até 40% de inclinação, o que poderia representar um avanço significativo para a colheita mecanizada no Nordeste.

Por outro lado, a mecanização também traz desvantagens. Segundo Gerson Carneiro Leão, presidente do Sindicato dos Cultivadores de Cana-de-Açúcar de Pernambuco (Sindicape), o corte manual oferece maior rendimento. “Com a máquina, perde-se muita cana pelo caminho ou ela não é bem cortada”, afirma ele. Além disso, o corte manual gera empregos, uma questão importante em regiões que dependem fortemente da agricultura para a subsistência.

Impactos ambientais e à saúde pública

A queima de canaviais libera uma série de poluentes atmosféricos, como dióxido de enxofre, monóxido de carbono e partículas finas, que são prejudiciais tanto para o meio ambiente quanto para a saúde humana. Esses gases contribuem para o aquecimento global e o efeito estufa, intensificando problemas climáticos já existentes. Além disso, a fuligem resultante da queima pode se espalhar por grandes áreas, chegando a regiões urbanas e afetando a qualidade do ar.

Segundo Maria Vera Cruz, pneumologista do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo (Iamspe), a exposição prolongada à fumaça pode causar sérios problemas respiratórios, como doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), asma e rinite alérgica. Ela alerta que, em períodos de maior concentração de fumaça, o ideal seria que a população evitasse sair de casa ou usar máscaras para reduzir a inalação de partículas nocivas.

No campo ambiental, o impacto é igualmente preocupante. A queima afeta diretamente o solo, prejudicando sua fertilidade a longo prazo. Segundo o professor Igor Rodrigues de Assis, do departamento de Solos da Universidade Federal de Viçosa, a queima destroi a matéria orgânica presente no solo e elimina os microrganismos que contribuem para sua saúde. Isso compromete a capacidade do solo de reter nutrientes e água, o que, por sua vez, diminui a produtividade das culturas. A longo prazo, esse desgaste pode transformar áreas agrícolas produtivas em terrenos inférteis, dificultando a recuperação da biodiversidade local.

Regulamentação e fiscalização

A regulamentação da queima controlada varia conforme a região. Em estados como Pernambuco, por exemplo, a queima só é permitida sob condições climáticas específicas, como ventos de baixa intensidade, e deve ser realizada em horários determinados, geralmente no início da manhã ou no final da tarde. Além disso, é obrigatório o uso de aceiros — faixas de terra desmatadas que impedem que o fogo se alastre — com pelo menos três metros de largura, para evitar que as chamas saiam do controle.

Ainda assim, apesar dessas regulamentações, a fiscalização nem sempre é eficaz. Como apontado pelo analista ambiental Jacileide Soares, da Agência Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco (CPRH), a fiscalização se esforça para garantir que as regras sejam seguidas, mas, em algumas situações, o controle do fogo em áreas rurais pode ser limitado.

Alternativas sustentáveis

A longo prazo, a solução para o problema da queima de canaviais passa pela busca de alternativas mais sustentáveis. O avanço da mecanização, mesmo em áreas de relevo acidentado, pode contribuir para a eliminação gradual da queima controlada. Além disso, práticas agrícolas mais sustentáveis, como o uso de biomassa ou técnicas de colheita sem queima, devem ser incentivadas. A educação ambiental e a conscientização dos produtores rurais também são fundamentais para promover uma transição para métodos de produção menos agressivos ao meio ambiente e à saúde pública.

Embora a queima de canaviais ainda seja permitida e amplamente utilizada no Brasil, os impactos ambientais e à saúde associados a essa prática são inegáveis. O avanço da mecanização e o desenvolvimento de novas tecnologias podem oferecer soluções para reduzir a dependência dessa técnica, mas a transição para uma agricultura mais sustentável depende de um esforço conjunto entre governos, produtores e a sociedade como um todo. Somente com políticas eficazes de fiscalização, regulamentação e incentivo ao uso de métodos alternativos será possível superar os desafios impostos por essa prática, protegendo tanto o meio ambiente quanto a saúde das pessoas

 

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