Geo Síntese

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O Legado de Anarcha e as Mulheres Escravizadas na Ginecologia

A história de Anarcha, Betsy e Lucy, mulheres escravizadas usadas em experimentos médicos que deram origem à ginecologia moderna.

A história das mulheres negras que foram vítimas de experimentos médicos durante o período da escravidão nos Estados Unidos é uma das páginas mais sombrias e esquecidas da medicina moderna. Entre elas, destacam-se Anarcha, Betsy e Lucy, cujos corpos foram usados para desenvolver práticas ginecológicas que ainda influenciam tratamentos médicos hoje. Essa trajetória traz à tona a reflexão sobre o racismo estrutural nas ciências e a maneira como as mulheres negras foram instrumentalizadas em nome do avanço científico.

O ano era 1845, e o cenário se desenrolava no estado do Alabama. Anarcha, uma jovem mulher escravizada de 17 anos, enfrentava complicações no parto. O bebê que ela trazia no ventre não conseguia passar pelo canal vaginal devido ao tamanho desproporcional, o que resultou em uma obstrução prolongada. Para muitas mulheres da época, esse seria um fim trágico, mas Anarcha sobreviveu. No entanto, a complicação deixou-a com uma fístula vesico vaginal — uma condição dolorosa e debilitante, que envolve a formação de uma abertura entre a bexiga e a vagina, causando incontinência urinária contínua. Esta condição, descrita como uma das complicações mais dolorosas e angustiantes de procedimentos ginecológicos, seria o ponto de partida para uma série de experimentos médicos que mudariam para sempre o curso da ginecologia moderna.

A Era da Escravidão e a ‘Medicina’ Colonial

Nesse contexto histórico, a escravidão era legal nos Estados Unidos, mas o comércio transatlântico de escravizados já havia sido proibido. No entanto, a escravidão ainda permanecia como uma instituição social e econômica. A Proclamação de Emancipação, que aboliria a escravidão formal nos Estados Unidos, só seria assinada em 1862, quase duas décadas depois dos experimentos de Sims.

James Marion Sims, o médico responsável por realizar as intervenções, se especializou no tratamento de fístulas como a de Anarcha. A escravização das mulheres negras não apenas garantiu o controle sobre sua saúde reprodutiva, mas também tornou possível que seus corpos fossem usados para experimentação médica sem consentimento. O conceito de “posse” não se limitava a objetos ou terras, mas também aos corpos de pessoas escravizadas, que eram tratadas como propriedades dos seus senhores. A visão utilitarista da saúde reprodutiva das mulheres negras reforçou a ideia de que suas vidas não tinham valor intrínseco, mas que sua capacidade de procriar poderia ser aproveitada para sustentar a economia da escravidão.

A historiadora Deirdre Cooper Owens, autora de Medical Bondage: Race, Gender and the Origins of American Gynecology, explica que a saúde reprodutiva das mulheres negras foi vista como um meio para garantir o “renascimento” da população escravizada, especialmente após a proibição do tráfico transatlântico de escravizados em 1807. Ou seja, os senhores de escravos investem na saúde reprodutiva das mulheres cativas, mas não para seu bem-estar, e sim como uma estratégia de aumento da força de trabalho.

Os Experimentadores e Seus ‘Modelos’ Humanos

Quando Anarcha foi trazida ao consultório de Sims, ele a submeteu a uma série de procedimentos experimentais. A primeira operação para corrigir a fístula de Anarcha foi um fracasso, mas isso não impediu que Sims continuasse suas tentativas com outras mulheres, todas cativas. Ele realizou cirurgias em Betsy, Lucy e várias outras mulheres que estavam em condições semelhantes, muitas vezes sem anestesia, já que, segundo as crenças da época, as pessoas negras não sentiam dor como os brancos.

De acordo com os relatos de Sims, ele estava determinado a encontrar uma solução para as fístulas, que eram um problema médico recorrente na época. Sua abordagem envolvia a criação de novos instrumentos cirúrgicos, que ele mesmo desenvolveu. Não satisfeitos com os progressos, ele começou a treinar as próprias pacientes para ajudar nas operações. Anarcha, Betsy e Lucy eram forçadas a amarrar umas às outras durante as cirurgias, que eram realizadas sem qualquer tipo de anestesia, um procedimento desumano que refletia a desvalorização da vida e da dor das mulheres negras.

A Ética de Seus Experimentos

James Marion Sims, embora considerado um “pioneiro” na ginecologia, praticou suas descobertas à custa de um sofrimento indescritível. Ele estava ciente das complicações que surgiam, mas a falta de respeito pelos direitos humanos das mulheres envolvidas em seus experimentos é inegável. Ele chegou a relatar, em sua autobiografia, o quanto se sentia inspirado por suas descobertas, mas ao mesmo tempo falhou em reconhecer a violência e a exploração envolvidas.

A ética por trás de suas pesquisas foi amplamente questionada nos tempos modernos. Embora tenha sido reconhecido como o “pai da ginecologia moderna”, a verdade sobre os sacrifícios feitos por suas pacientes cativas finalmente veio à tona, e com ela, a reconsideração do legado de Sims.

Legado de Exploração e Reconhecimento das Mulheres

Com o tempo, as contribuições de Sims para a ginecologia foram reconhecidas. Contudo, em 2018, um movimento de ativistas e acadêmicos levou à remoção de uma estátua de Sims, erguida em sua homenagem, em Nova York. Isso se deu após uma crescente conscientização sobre as condições sob as quais ele fez suas descobertas — as vidas sacrificadas de mulheres negras que não puderam consentir com os procedimentos aos quais foram submetidas.

Hoje, Anarcha, Betsy e Lucy, junto com outras mulheres cujos nomes não foram registrados, são reconhecidas como as verdadeiras pioneiras da ginecologia moderna. A ativista Michelle Browder, em um esforço para restaurar sua memória, ergueu uma escultura em Montgomery, Alabama, em homenagem a essas mulheres corajosas. Elas são, sem dúvida, as verdadeiras “mães da ginecologia”.

Conclusão: Uma História de Resistência e Reconhecimento

A história de Anarcha, Betsy e Lucy nos ensina muito sobre as complexas relações entre medicina, racismo e escravidão. Embora as descobertas feitas em seus corpos tenham trazido avanços significativos para a medicina ginecológica, o preço que essas mulheres pagaram não pode ser esquecido. Elas não foram meros objetos de estudo, mas seres humanos que, através de seu sofrimento, desempenharam um papel crucial na história da medicina. Seu sacrifício deve ser lembrado e reconhecido, para que possamos, como sociedade, garantir que as injustiças do passado nunca se repitam.

 

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