Quando Donald Trump decidiu resgatar instrumentos legais antigos para impor tarifas sobre produtos estrangeiros e incentivar a instalação de fábricas no território americano, muitos viram nessa decisão um retorno a uma lógica econômica considerada ultrapassada. Mais ainda: analistas atentos identificaram ecos claros das políticas industriais adotadas por líderes latino-americanos do século XX, como Juan Domingo Perón na Argentina e Getúlio Vargas no Brasil. Mas o que está por trás dessa reedição do nacionalismo econômico? Por que o protecionismo, mesmo desacreditado por parte da academia e do mercado, continua ressurgindo como resposta a desafios contemporâneos?
Para compreender o fenômeno, é necessário voltar ao conceito de industrialização por substituição de importações (ISI). Essa estratégia foi central para diversos governos da América Latina entre as décadas de 1930 e 1970, período marcado por instabilidades internacionais — como a Grande Depressão e as Guerras Mundiais — e pelo colapso das cadeias globais de suprimentos. A lógica da ISI era simples: ao invés de importar bens manufaturados, os países deveriam produzi-los internamente, protegendo seus mercados com tarifas alfandegárias, subsídios e regulamentações que favorecessem a indústria nacional.
Em sua essência, essa política visava à autossuficiência econômica e à redução da dependência dos países latino-americanos em relação às potências industriais, sobretudo europeias e norte-americanas. Foi exatamente com esse discurso que Juan Domingo Perón, em 1947, proclamou a “independência econômica” da Argentina, num gesto pomposo que marcou a história econômica do país. A cerimônia foi simbólica: cercado por bandeiras e operários, o presidente argentino assinou um documento que decretava a libertação da nação das “hegemonias econômicas globais”.
Décadas antes de Trump, Getúlio Vargas, em sua volta ao poder em 1951, também recorreu a mecanismos legais para promover a indústria nacional. A chamada “lei do similar” permitia que produtores locais solicitassem proteção contra concorrentes estrangeiros, desde que demonstrassem a capacidade de fabricar produtos similares. A ideia era simples, mas eficaz: impor barreiras à entrada de produtos estrangeiros e incentivar empresas estrangeiras a se instalarem no Brasil, como forma de preservar o mercado doméstico e gerar empregos.
É nessa trilha que se insere a política econômica de Donald Trump. Ao anunciar tarifas sobre aço, alumínio e outros produtos importados, o ex-presidente americano utilizou a Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional, de 1977, como base jurídica para o protecionismo. Ainda que contestada judicialmente, essa medida foi, por ora, mantida por um tribunal de apelações. A retórica trumpista, por sua vez, ressoava a mesma indignação nacionalista de Perón: “Líderes estrangeiros roubaram nossos empregos, bandidos estrangeiros saquearam nossas fábricas”, bradou Trump em abril, ao anunciar novas tarifas.
Esses paralelos não passaram despercebidos. Para a economista Monica de Bolle, do Instituto Peterson de Economia Internacional, “a lógica de Trump é muito do século passado, e é por isso que se assemelha tanto às experiências latino-americanas com o ISI”. Em entrevista à BBC News Mundo, De Bolle reforça que a comparação vai além da estética ou da retórica: trata-se de uma verdadeira tentativa de replicar, em pleno século XXI, políticas que já demonstraram seus limites históricos.
Contudo, é essencial reconhecer as diferenças de contexto. Enquanto o ISI foi adotado por países em desenvolvimento, como Brasil e Argentina, que buscavam acelerar seu processo de industrialização, os Estados Unidos já são uma nação altamente desenvolvida. Além disso, Vargas e Perón promoveram grandes empresas estatais — no setor petrolífero, elétrico e siderúrgico — ao passo que Trump, embora intervencionista na prática, prega uma ideologia de redução do Estado.
Apesar dessas nuances, os efeitos colaterais do protecionismo são amplamente conhecidos. Na América Latina, o ISI permitiu a criação de indústrias e a urbanização rápida de certas regiões. Países como México, Argentina e Brasil tornaram-se semi-industrializados antes dos anos 1970. No entanto, a estratégia revelou falhas estruturais: escassez de divisas para importar máquinas e peças, ineficiência produtiva, formação de monopólios, corrupção e dependência crônica do Estado por parte do setor privado.
A tentativa de Trump de proteger a indústria americana carrega riscos semelhantes. Como alertou recentemente o banco JPMorgan Chase, existe o perigo de que os EUA repitam os erros dos líderes latino-americanos do passado: protecionismo excessivo, enfraquecimento da independência do banco central e desrespeito às regras da estabilidade macroeconômica. Ironicamente, muitos países latino-americanos têm avançado no sentido oposto, enquanto os EUA parecem flertar com práticas que outrora foram abandonadas como inviáveis.
O caso do México é ilustrativo. Após décadas de ISI, o país decidiu romper com essa lógica ao firmar o NAFTA (Acordo de Livre Comércio da América do Norte) nos anos 1990. Essa guinada possibilitou uma reestruturação da economia mexicana, com maior inserção global e ganhos de produtividade. “Brasil e Argentina nunca escaparam do ISI até hoje e têm indústrias nada competitivas”, afirma De Bolle. Para ela, o protecionismo prolongado gera uma dependência do setor privado em relação ao governo, o que compromete o crescimento e agrava crises fiscais.
Paradoxalmente, o atual presidente da Argentina, Javier Milei, alinhado ideologicamente a Trump, é um crítico feroz da substituição de importações, que chama de “modelo fracassado”. Ainda assim, Trump mantém sua postura. Em junho, por exemplo, dobrou as tarifas sobre aço e alumínio estrangeiros, alegando motivos de segurança industrial. No entanto, como mostra a história, medidas desse tipo podem resultar em inflação, encarecimento de insumos e prejuízos para os próprios trabalhadores que se pretendia proteger.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) alertou que, caso as tarifas atuais se mantenham, o crescimento do PIB americano pode cair de 2,8% (em 2024) para 1,6% (em 2025). Essa retração se deve, em parte, ao encarecimento de produtos intermediários, que afeta diretamente a cadeia produtiva industrial e reduz a competitividade internacional.
Em suma, o retorno ao protecionismo pode ser compreendido como uma reação emocional — e política — a transformações globais como a ascensão da China, a fragmentação das cadeias de suprimento e as inseguranças da classe trabalhadora. Mas como demonstram os casos latino-americanos do século XX, políticas de isolamento comercial e incentivo estatal desordenado à indústria tendem a produzir mais distorções do que soluções.
A história ensina. A insistência em práticas superadas, por mais sedutoras que sejam em seu apelo nacionalista, pode levar até mesmo a economias avançadas a repetir erros já cometidos — e pagos com juros e correção monetária ao longo das décadas.
Referências bibliográficas
- Furtado, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2007.
- Ocampo, José Antonio. The Economic Development of Latin America since Independence. Oxford University Press, 2011.
- De Bolle, Monica et al. Economia do Populismo. Brasília: Instituto Peterson de Economia Internacional, 2024.
- Skidmore, Thomas. Brasil: De Getúlio a Castelo. Paz e Terra, 1993.
BBC News Mundo. “Trump y el modelo latinoamericano de sustitución de importaciones.” Acesso em: abril de 2025.