Nas primeiras horas da manhã, enquanto o sol ascende preguiçosamente no horizonte, Pay Drechsel inicia sua caminhada diária pelos campos alagados de Thalangama, um verdadeiro oásis ecológico no coração de Colombo, a vibrante capital do Sri Lanka. O cenário é de rara beleza: nenúfares rosados se abrem lentamente, um fazendeiro acaricia seu búfalo de água submerso até o pescoço, e um martim-pescador, imóvel, observa a superfície espelhada do lago à espera de um peixe incauto. Logo, os fotógrafos se espalham entre trilhas e margens, buscando enquadrar as garças elegantes, os cormorões mergulhadores e outras aves que fazem dali seu lar.
No entanto, essa cena serena e biodiversa nem sempre existiu. Pouco mais de uma década atrás, a paisagem contava outra história: a degradação era evidente, os canais estavam entupidos de lixo, o odor era ácido, e as águas, poluídas por contaminantes domésticos e industriais, mal sustentavam a vida. Drechsel, que atualmente atua como gerente nacional interino do Instituto Internacional de Gerenciamento da Água (IWMI) em Colombo, lembra-se de um Natal particularmente simbólico. Naquela data, ele dedicou o dia à limpeza do lago, retirando pilhas de lixo podre e separando resíduos para reciclagem. Sua iniciativa espontânea logo inspirou transeuntes a se juntarem ao esforço. “Percebi que não era só eu – os moradores também valorizavam aquele espaço”, diz ele.
Esse espírito coletivo culminou na criação do Thalangama Wetland Watch, uma rede comunitária que organiza mutirões de limpeza semanais. Resíduos são recolhidos, classificados e encaminhados para reciclagem, enquanto crianças de escolas locais navegam em caiaques, ajudando a remover espécies invasoras como o jacinto-de-água. É uma iniciativa que une educação ambiental, cidadania e amor pelo território.
Colombo, com seus mais de dois milhões de habitantes, é uma cidade construída sobre um intricado sistema de zonas úmidas. Em 2018, essa relação foi formalmente reconhecida quando a capital foi nomeada uma das 18 Cidades de Zonas Úmidas de Ramsar, distinção que celebra o compromisso urbano com a conservação desses ambientes vitais. Em 2022, mais 25 cidades receberam essa honraria, reforçando a crescente conscientização sobre o valor das zonas úmidas.
Essas áreas cumprem uma função essencial no metabolismo urbano. Colombo, situada em uma bacia hidrográfica, é naturalmente suscetível a inundações – mas as zonas úmidas atuam como amortecedores naturais, absorvendo até 40% das águas pluviais e reduzindo a intensidade das cheias. Mais do que isso, elas sequestram carbono, purificam o ar e regulam a temperatura local. Como explica Chethika Gunasiri, cientista ambiental da Universidade de Tóquio, “as zonas úmidas são fundamentais para mitigar os impactos das mudanças climáticas. Elas amortecem desastres naturais e também reduzem o estresse da vida urbana em verticalização crescente”.
Historicamente, as zonas úmidas faziam parte do cotidiano das populações locais. Segundo Missaka Hettiarachchi, pesquisador sênior do Fundo Mundial para a Vida Selvagem (WWF), reinos antigos prosperaram graças à boa gestão desses ecossistemas, que eram usados para transporte, irrigação e cultivo. A ruptura desse vínculo começou no período colonial britânico, quando áreas úmidas foram drenadas para dar lugar a estradas, indústrias e empreendimentos imobiliários. Em 1924, um plano de contenção de enchentes substituiu canais naturais por sistemas artificiais. Embora úteis inicialmente, esses canais hoje estão assoreados e contaminados.
Com a independência do país em 1948, alguns pântanos foram protegidos, mas muitos outros continuaram sendo aterrados. A invisibilização dessas áreas levou a um problema ainda mais grave: o despejo sistemático de lixo e esgoto. A partir dos anos 1980, montanhas de resíduos surgiram em áreas como Meethotamulla, onde a deposição desenfreada resultou em uma tragédia em 2017 – um deslizamento de lixo causou a morte de 32 pessoas.
Durante a guerra civil (1983-2009), os pântanos também foram invadidos por populações deslocadas, o que levou à degradação de habitats e à perda de capacidade de retenção hídrica. Um estudo revelou que o pântano de Kolonnawa perdeu 65% de sua área original desde o século XIX. Isso contribuiu diretamente para eventos catastróficos, como as inundações de 2010 que impactaram cerca de 700 mil pessoas e submergiram inclusive o parlamento nacional.
Diante desse colapso, o governo adotou uma nova postura. Em 2016, lançou a Estratégia de Gestão das Zonas Úmidas Metropolitanas de Colombo, que busca integrar essas áreas ao planejamento urbano, restaurar ecossistemas e envolver a população em sua conservação. Desde então, diversas intervenções foram realizadas: ciclovias, trilhas de corrida e mirantes foram construídos ao redor dos pântanos, atraindo moradores e visitantes.
Segundo Gunasiri, a ideia era “reconectar as pessoas aos pântanos”. Além da remoção de espécies invasoras, foram introduzidas plantas nativas para estimular a volta da fauna. O resultado é visível. O subúrbio de Kotte, antes sufocado por jacintos-de-água, agora abriga trilhas e pontos de observação de aves. “Hoje, as pessoas falam sobre zonas úmidas com orgulho”, diz o fotógrafo Nazly Ahmed. Essa mudança de mentalidade transforma espaços antes ignorados em locais de contemplação e lazer.
A reconexão afetiva com a paisagem é fundamental. Quando um ecossistema natural é apropriado como espaço público, surge o senso de pertencimento, como observa Jirasinha, pesquisadora do IWMI. E esse pertencimento gera vigilância social: “As pessoas olham para a água e se perguntam de onde vem a poluição. Isso é cidadania ativa”, afirma ela.
Ainda assim, os desafios persistem. Após o fim da guerra, a expansão urbana acelerou. Desde 2009, Colombo perdeu 2,12 km² de zonas úmidas, que foram substituídas por habitações e empreendimentos. Um estudo de 2024 revelou que áreas alagadas absorvem 62,1 mm a mais de água da chuva do que superfícies urbanizadas. Ou seja, quanto mais zonas úmidas são perdidas, maior a vulnerabilidade da cidade às inundações.
Apesar disso, há esperança. A mobilização comunitária, aliada às políticas públicas, mostra que é possível reverter décadas de negligência ambiental. Para Drechsel, o valor das zonas úmidas vai além da ecologia. Elas influenciam inclusive a economia urbana: “As propriedades próximas a essas áreas chegam a valer o dobro”, afirma.
A trajetória de Colombo é, portanto, uma narrativa de reconciliação entre cidade e natureza. Ao resgatar suas zonas úmidas, Colombo não apenas protege seu território, mas reativa a memória coletiva e prepara-se para um futuro mais resiliente.